08 de nov. de 2024
Era outubro de 1823. À época, a então Província do Grão-Pará vivenciou um dos capítulos mais marcantes de sua história. Às margens da Baía do Guajará, na altura do Ver-o-Peso, em Belém, 256 pessoas estavam aprisionadas no porão do brigue São José Diligente. Elas reivindicavam por equiparação salarial e outras demandas no contexto da Independência do Brasil (1822-1825) e da Adesão do Pará. Esse episódio, que resultou na morte de 252 delas naquele local, conhecido como o Massacre do Brigue Palhaço, foi pintado pelo artista Romeu Mariz Filho. A emblemática obra está exposta no Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA), como parte da exposição Moeda Cabana, composta por fotos do artista André Penteado e com curadoria de Vânia Leal e Keyna Eleison.
Vânia explica que é de suma importância ter a obra Brigue Palhaço no CCBA, uma tela representativa do acervo museológico do Museu de Arte de Belém e que faz parte do imaginário da população de Belém (PA). “Considero este momento importante principalmente na relação institucional Museu e Centro Cultural, pois, assim, reforçamos elos comuns em compartilhamentos de arte e vida”, avalia.
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Segundo ela, a escolha da obra para compor a exposição Moeda Cabana se deu pela relação curatorial aliada ao movimento da Cabanagem. “A tragédia do Brigue Palhaço foi um acontecimento onde mais de 252 pessoas morreram a bordo da embarcação ‘São José Diligente’. Então, a pintura de Romeu Mariz Filho na exposição é um testemunho de que aquele trágico acontecimento mergulha em uma profunda exploração do horror e da brutalidade dos atos que um sistema de morte institucionalizado é capaz de perpetrar. Sua obra não apenas reflete a violência extrema, mas a desumanização total que tal sistema impõe sobre seus alvos, desvelando uma realidade onde a vida é reduzida a meros números, e a morte, um instrumento de poder”, explica Vânia.
A curadora Vânia Leal e o fotógrafo André Penteado na exposição Moeda Cabana (Foto: Ana Dias)
Nessa perspectiva, a curadoria provocou um diálogo da pintura com a obra “252”, um vídeo produzido pelo artista Armando Queiroz. “Esse vídeo transcende a simples reencenação histórica, porque torna visível as pessoas que morreram no navio. A tragédia do Brigue Palhaço, na verdade, acontece anteriormente à Cabanagem, mas, para alguns historiadores, está relacionada fortemente a um episódio no qual a repressão foi tão forte, tão bárbara, que a Cabanagem foi sufocada e só aconteceu uma década após. Então, a escolha curatorial provoca diálogos importantes e traz à tona a invisibilidade do movimento Cabanagem”, explica.
A tragédia do Brigue Palhaço se tornou um símbolo da luta pelos direitos humanos, mas muitas vezes este massacre é um episódio silenciado pela história e que precisa ser trazido à tona por exposições, pesquisas acadêmicas e atividades pedagógicas realizadas dentro ou fora da sala de aula. “Eu diria não só para professores, mas para pesquisadores e para a população em geral, que não percam essa oportunidade de ver o Brigue Palhaço de perto, ver as camadas pictóricas, as tensões que o artista cria na obra, trazendo algo que realmente aconteceu diante de um fato histórico tão importante, mas infelizmente muito invisibilizado pelos sistemas que distorcem as histórias, negando o que de fato aconteceu”, avalia Vânia. E acrescenta: “então, o Brigue Palhaço é um testemunho vivo, visual, e é também um grande momento para qualquer professor se apropriar desse trabalho, dessa obra visual, que é um texto visual, e trabalhar com os seus alunos em sala de aula. Estamos vivendo um momento muito importante de recontar a história. Eu digo que o Brigue Palhaço é uma obra extremamente atual, porque ela convoca a todos para recontar essa história, como, de fato, foi o movimento da Cabanagem”.
Exposição Moeda Cabana fica aberta até dezembro no CCBA (Foto: Ana Dias)
O diretor do Arquivo Público do Pará, Leonardo Torii, defende a importância de relembrar o massacre a partir de uma nova perspectiva. “O Brigue Palhaço foi, de fato, uma violação aos direitos humanos. No entanto, essa perspectiva é contemporânea. À época, não se falava em direitos humanos. Mas isto não significa que não possamos fazer as reparações necessárias. Recordar, além de ser um ato de justiça social, nos permite lembrar os nomes das pessoas que morreram nesse momento trágico. A história serve justamente para isso, e o passado nos ajuda a repensar nosso presente, o que queremos como sociedade, nação e estado”, avalia.
Além dos 252 mortos asfixiados no porão da embarcação, os quatro sobreviventes (até então), também foram mortos logo após serem achados com vida, totalizando 256 pessoas mortas no massacre. Hoje, os nomes estão em um documento chamado “Devassa”, que está sob a salvaguarda do Arquivo Público Nacional, na cidade do Rio de Janeiro.
Vânia explica que Romeu Mariz Filho contribui de maneira significativa ao se unir como artista convidado. “A obra não apenas dialoga, mas também confronta as narrativas dos outros artistas, expandindo as proposições imagéticas apresentadas. Através de uma paleta que mescla tonalidades sombrias com explosões de cor, a pintura captura a essência da crueldade e do sofrimento humano, refletindo a desumanização imposta por sistemas de poder que se alimentam da morte e do controle sobre vidas consideradas descartáveis.
“A pintura não só conecta, mas intensifica o diálogo com as narrativas dos outros artistas presentes na exposição. Vai além de uma simples representação artística, serve como um grito visual contra as atrocidades cometidas em nome de sistemas que legitimam o extermínio, ampliando o impacto das proposições imagéticas dos outros artistas. Ao detalhar a cena trágica, o artista não só evidencia o horror dos atos cometidos, mas também denuncia a cumplicidade silenciosa da sociedade frente a essas brutalidades. ‘A tragédia do Brigue Palhaço’ torna-se, assim, um poderoso meio de resistência e memória, uma lembrança constante das vidas ceifadas pela violência institucionalizada, ao mesmo tempo em que desafia o espectador a confrontar as duras realidades políticas e sociais que permitem tais atos. Corpos dilacerados, contudo, jamais esquecidos. Cabanagem, aqui e agora. Presente!”, finaliza Vânia.
Obra Tragédia do Brigue Palhaço exposta no CCBA. Romeu Maria Filho, 1936, óleo sobre tela, 127,5cmx145cm (Foto: Ana Dias)
No total pereceram 252 homens sufocados e asfixiados (com lábios e olhos arroxeados e o rosto esbranquiçado que lembravam palhaços). Após a tragédia a embarcação foi apelidada de "brigue Palhaço".
Serviço:
Confira a obra “Tragédia do Brigue Palhaço” presente na exposição Moeda Cabana, no CCBA, com curadoria de Vânia Leal.
O Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA) funciona: segunda e terça (fechado), quarta e quinta (9h às 17h), sexta e sábado (10h às 20h), domingos e feriados (10h às 15h). Última entrada sempre 1 hora antes do fechamento. Local: CCBA - R. Sen. Manoel Barata, 400 - Campina, Belém.
Entrada: gratuita.
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